“Who is the living food for the machines in Metropolis? Who lubricates the machine joints with their own blood? Who feeds the machines with their own flesh?”
Metropolis, Fritz Lang, 1927
Qualquer um que more em uma metrópole, de forma mais ou menos recorrente, vai notar os problemas do ambiente urbano, em sua forma mais acentuada: sujeira, poluição do ar, trânsito, mendicância, uso público de drogas, criminalidade, barulho etc. Estamos fartos de conhecê-los e vivenciá-los. Com seus arranha-céus, seu transporte subterrâneo, suas vias de trânsito rápido e sua multitude geral de veículos e pessoas, a grande cidade deixa dúvidas quanto ao propósito da sua existência: é a manifestação da máxima busca pela eficiência, a realização do materialismo consumista, o lugar em que há mais evidências da agência humana, mas menos evidências do seu propósito. Habitar em uma delas é se perguntar, de quando em quando: “Fomos feitos para viver assim?”
Como morador de uma delas, costumo dizer que sofremos de uma forma de “síndrome de Estocolmo”, isto é, a cidade nos sequestra, toma nosso tempo, nossa saúde física e mental, e ao mesmo tempo nutrimos por ela uma certa atração, uma simpatia. Isto é fruto, principalmente, do conforto e das opções que ela nos proporciona. Como já mencionei em outros artigos, considero o conforto como a maior armadilha da modernidade, o caldeirão em que o sapo é distraidamente cozido, enquanto pede seu Ifood e assiste ao seu Netflix. Alguém que more em São Paulo quase não precisa sair de casa, se não quiser - e se trabalhar em esquema de home-office. É uma cidade em que muitos moram, mas quase ninguém vive. Andar por São Paulo é ver como um ambiente feito por seres humanos e para seres humanos parece ser justamente o contrário disso: um lugar cuja estrutura parece ignorar completamente nossas necessidades básicas - espirituais, não materiais.

Afastado da natureza, o homem deixa de reconhecer, na criação, os atributos divinos, como fala o apóstolo Paulo no primeiro capítulo de sua carta aos romanos. Não julgo alguém que, ao abrir a minúscula janela de um apartamento no centro de São Paulo e olhar ao redor, pense que não há Deus. É um ambiente que isola, adoece, esteriliza. O homem antigo, no campo, via a assinatura divina nas folhas das árvores, no voo da libélula, no céu forrado de estrelas, no cheiro da grama após a chuva, e não tinha qualquer dúvida de fazer parte de uma ordem cósmica, universal, cuja beleza e harmonia não poderiam repousar em nada mais do que o Deus eterno e incriado. O culto ao consumo rouba o lugar da natureza, como também torna a cidade uma espetáculo de feiúra e mecanicidade, linhas e ângulos retos, o abandono total da beleza em prol da eficiência e da otimização de recursos. Habitar um lugar assim dificulta ao homem a contemplação que lhe é tão necessária, ele se torna descolado da realidade, e a abundância relativa de que desfruta o afasta dos reais problemas do mundo; não à toa, é na metrópole que mais se multiplicam ideologias que criam problemas inexistentes, assim como seus responsáveis, a elite intelectual progressista. Como ninguém conhece ninguém, as pressões sociais e estigmatizações são muito mais infrequentes, não apenas desinibindo, mas favorecendo todo tipo de comportamento que foge à norma, tornando a grande cidade um terreno fértil para a glorificação de todo e qualquer desvio moral: é o lugar onde se é mais livre, comportamental e financeiramente e, ao mesmo tempo, onde se é mais escravo: do trabalho, do consumo e do pecado.
O filósofo político Richard Weaver, em seu mais conhecido “Ideias têm consequências”, fala sobre a ideia de “comunidade metafísica”, uma “sociedade espiritualmente unida”, em que as pessoas valorizam o convívio e há uma convergência das personalidades, sustentada por um ideal comum. Para Weaver, o fato de a cidade ter se tornado o modelo de organização mostra como as relações interpessoais não são prioridade para nós. Num lugar assim, em que as pessoas habitam próximas mas sem qualquer conexão umas com as outras, muito frequentemente com concepções divergentes da realidade, a ideia de comunidade metafísica é impossível. Como ter um propósito em comum com quem quer que seja, se estamos todos vivendo para o imediato material? Há apenas o indivíduo, com seus individuais propósitos. Quando muito ele também tem mulher e filhos com os quais partilha seus objetivos. Mas coletivamente, com outros homens, não há grande plano, não há qualquer força que direcione a um propósito maior. As nossas construções, como tudo o que produzimos materialmente com nossas “mãos”, representam a essência da nossa sociedade: se antigamente elas buscavam evocar uma realidade superior, ser uma representação terrena da hierarquia cósmica natural, hoje os prédios espelhados são monumentos à eficiência e à plutocracia.
Já são clichés os vídeos do youtube que mostram metrópoles como Rio, São Paulo e Nova Iorque há cem anos ou mais. Quem falar que não há decadência está mentindo para si mesmo, ou tão iludido que está além da salvação; este declínio se mostra não só nas construções e na limpeza, mas também nos trajes das pessoas comuns. Não quero ser nostálgico ou ingênuo como que acredite ser possível voltar no tempo, no entanto, a degradação evidente das grandes cidades é um sintoma, um efeito de uma doença indolente, parasítica, que não mata de uma vez, mas vai enfraquecendo e desvitalizando a humanidade.
Em Gênesis, vemos o episódio do assassinato de Abel por seu irmão Caim, e as consequências, para este último, do seu ato de ira: Caim perde a presença de Deus. Uma vez perdida a presença divina, o que faz o fratricida? Ele diz: “É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se encontrar me matará.” Privado da segurança e paz que a presença divina lhe proporcionava, o que faz Caim? Ele funda uma cidade, na qual coloca o nome do seu filho. Que de sua linhagem surjam os primeiros músicos e artesãos, o que pressupõe a ideia de civilização, não é absolutamente uma coincidência.
Mais adiante, os homens se unem para também tornar célebre um nome, neste caso o seu próprio, e fundam Babel. Como colocado por Leon Kass, há um significado profundo em “fazer para si um nome”:
To make a new name for oneself is to remake the meaning of one's life so that it deserves a new name. To change the meaning of human being is to remake the content and character of human life. The city, fully understood, achieves precisely that.
Esta cidade é já uma antevisão do que seria a metrópole moderna: uma ode à soberba humana, um monstro que absorve tudo ao redor em prol de um projeto secularizado e vertical, desafiante. Kass explica de forma brilhante como a civilização urbana moderna e o homem que ela produz já encontram seu embrião em Babel:
The project that human beings are about to undertake is not the work only of Nimrod and the line of Ham; it is a universal human project. This is the first clue that Babel is not just any city but is the city, the paradigmatic or universal city, representing a certain universal human aspiration. […] Through technology, through division of labor, through new modes of interdependence and rule, and through laws, customs, and mores, the city radically transforms its inhabitants. At once makers and made, the founders of Babel aspire to nothing less than self-re-creation-through the arts and crafts, customs and mores of their city. […] The children of man (’adam) remake themselves and, thus, their name, in every respect taking the place of God. […] Civilization suffers, perhaps, when compared with the innocence and contentment of Eden; but when men come face-to-face with hostile nature or hostile men in a state of nature, the city appears as a remedy and the universal city a dream of deliverance, peace, and prosperity. […] Protected by its walls, warmed and comforted in its habitats, and ruled by its teachings, the children of Adam, now men of the city, neither know nor seek to know anything beyond. Contentment reigns, or so it does seem.
Repare como, novamente, o homem aceita ser transformado pela cidade em troca de desfrutar segurança e conforto, perdidos ao ser expulso do jardim. O final de Babel é ainda mais evocativo da grande cidade: todos terminam por terem sua linguagem confundida por Deus, sem se entender, e o projeto é abandonado. É frustrada a primeira tentativa de humanismo universal. Embora quase todos falemos português em São Paulo, alguém se atreverá a dizer que temos uma “linguagem comum”, isto é, que de fato nos entendemos? O habitante da Babel moderna é atomizado, uma mera peça de engrenagem. Claro que não há um cabal que decidiu, à maneira da torre antiga, construir uma cidade em desafio à autoridade divina. Entretanto, se não há uma volição clara, por outro lado, é o mesmo espírito que anima ambos os empreendimentos. A ganância, a soberba, a busca da independência, tudo está tanto lá como cá, e o resultado é o mesmo: o julgamento divino, a confusão. Esta é, inclusive, a tradução provavelmente mais acurada do nome Babel.
Ainda no Gênesis, vemos quando Abraão e seu sobrinho Ló, para evitar problemas, se apartam um do outro. Ló escolhe a vida mais fácil, mais confortável, da planície, enquanto Abraão vai para as montanhas. O resultado foi que aquele “foi armando as suas tendas até Sodoma”. A armadilha do conforto levou-o até Sodoma, que, junto com Gomorra, foi alvo da destruição divina, tamanha era sua degradação e iniquidade. Aqui aparece, pela primeira vez, o arquétipo da grande cidade como lugar de depravação e corrupção, algo frequente na história da ficção, tendo como exemplo moderno mais conhecido a cartunesca Gotham City.
A decadência da metrópole é algo tão evidente que críticas foram feitas de todos os lados do espectro político-ideológico: marxistas identificaram nela o resultado final do capitalismo, o lugar onde o trabalhador é mais explorado pelo capital; conservadores veem a destruição das tradições, a sujeira das ruas, a libertinagem e a feiúra das construções; reacionários acrescentam a isso a miséria moral, a perda do senso de comunidade, a secularização, esterilização e passividade do homem urbano. Há muitos pensadores que se dedicaram a explicar os problemas das grandes cidades, mas cuja análise variou grandemente em escopo. Num primeiro nível, que corresponde aos aspectos relacionados ao urbanismo propriamente dito, um dos principais representantes é a escritora e ativista estadunidense Jane Jacobs.
Jacobs percebeu como a ganância desenfreada das grandes empresas, combinada ao orgulho tecnicista dos planejadores, transformara as grandes cidades, destruindo bairros tradicionais, levando o pequeno comércio à falência e mudando os personagens principais do ambiente urbano: o pedestre é substituído pelo carro; a comunidade é substituída pelos prédios de apartamento onde ninguém se conhece; o pequeno comércio pelas franquias e pelos centros empresariais. Ela argumentava que as vizinhanças organicamente estabelecidas deveriam ser o foco dos projetos de urbanismo, e combateu ativamente, através de protestos organizados e discursos em audiências públicas, a construção de uma via rápida, a Lower Manhattan Expressway, que levaria à desapropriação de parte de um bairro tradicional de Nova Iorque.
Em sua obra mais conhecida, “The death and life of great american cities”, ela afirma que a coesão social depende muito dos pequenos negócios e da mistura deles com as residências. Se colocava contrária ao zoneamento, fruto da ideia de divisão do trabalho, que produzia os monótonos subúrbios, as áreas comerciais e distritos industriais.
Commercial diversity is, in itself, immensely important for cities, socially as well as economically. Most of the uses of diversity [...] depend directly or indirectly upon the presence of plentiful, convenient, diverse city commerce.
[…]
The district, and indeed as many of its internal parts as possible, must serve more than one primary function; preferably more than two. These must insure the presence of people who go outdoors on different schedules and are in the place for different purposes, but who are able to use many facilities in common.
Sua crítica se concentra na questão organizacional e no urbanismo prático, defendendo uma “cidade caminhável” e a manutenção dos bairros tradicionais. Para Jacobs, a cidade deve ser feita para as pessoas e pelas pessoas.
Cities have the capability of providing something for everybody, only because, and only when, they are created by everybody.
Ela também entende que há necessidade de diversidade na cidade, para que a autêntica experiência humana e as conexões reais entre as pessoas não se percam. Sua crítica aos planejadores perpassa toda sua obra: para ela, o tecnocrata fabrica uma ordem que não tem amparo na realidade, a única fonte possível da verdadeira ordem.
There is a quality even meaner than outright ugliness or disorder, and this meaner quality is the dishonest mask of pretended order, achieved by ignoring or suppressing the real order that is struggling to exist and to be served.
[…]
The pseudo-science of city planning and its companion, the art of city design, have not yet embarked upon the adventure of probing the real world.
Para Jacobs, não há nada intrinsecamente errado com a metrópole, ela apenas carece de uma planejamento cuja abordagem leve em conta os aspectos orgânicos e humanos, valorizando, sobretudo, as comunidades locais e a diversidade, o que, segundo ela, garante uma cultura urbana vibrante. Se sua análise é correta ao identificar os problemas dos planejadores por buscarem impor uma ordem sem amparo na realidade, ela é otimista demais em certos aspectos, acreditando que um crescimento orgânico das cidades traria, de forma natural, um ambiente urbano melhor; também vemos como ela depositava excessiva confiança na capacidade das comunidades de se opor ao grande capital, por exemplo, e de permanecerem harmônicas, mesmo diante da chegada de pessoas de fora. Toda cidade é produto de sua civilização, e tratar estas questões mais superficiais, embora possa melhorar a vida das pessoas e seja uma tentativa de trazer alguma harmonia ao caos, não resolve o problema que o produziu em primeiro lugar. Jacobs viu os sintomas, mas não a doença.
Semelhantemente a Jacobs, o também norte-americano Lewis Mumford percebeu os problemas advindos do capitalismo selvagem e da sanha organizadora dos planejadores centrais. Diferentemente dela, porém, ele entendeu corretamente que a decadência urbana era fruto de um problema civilizacional: identificando a substituição da qualidade pela quantidade, Mumford critica a ideia moderna da expansão pela expansão, que também poderíamos chamar de o progresso pelo progresso, com o sacrifício das comunidades e do que é realmente orgânico e autêntico nas cidades. Para o autor, a metrópole indica o declínio da civilização como um todo, uma concentração de poder urbano que historicamente antecedeu toda ruína. Fugindo da falsa dicotomia entre comunismo e liberalismo tão pervasiva à sua época, ele identifica problemas de ambos os lados das forças conflitantes, o empreendimento humano em geral caminhando para uma concentração, política e econômica, cada vez maior.
Those who believe that there are no alternatives to the present proliferation of metropolitan tissue perhaps overlook too easily the historic outcome of such a concentration of urban power: they forget that this has repeatedly marked the last stage in the classic cycle of civilization, before its complete disruption and downfall.
[…]
the fact that the same signs of overgrowth and overconcentration exist in 'communist' Soviet Russia as in 'capitalist' United States shows that these forces are universal ones, operating almost without respect to the prevailing ideologies or ideal goals.
Não só isso, mas ele prevê o que seria o futuro das grandes cidades e, na sua visão, da própria civilização humana - já que ambos são indissociáveis - se os economistas e sociólogos da época, no seu impulso expansionista, não identificassem as forças de destruição atuantes:
Sociologists and economists who base their projects for future economic and urban expansion on the basis of the forces now at work, projecting only such changes as may result from speeding up such forces, tend to arrive at a universal megalopolis, mechanized, standardized, effectively dehumanized, as the final goal of urban evolution. Whether they extrapolate 1960 or anticipate 2060 their goal is actually '1984.'
Qualquer um que observe atentamente o que se passa no mundo, não poderá negar a acurácia desta previsão. Mumford traz uma excelente análise não só da decadência das metrópoles, como também do próprio declínio civilizacional. Via a cidade como a manifestação do processo de formação das “mega-machines”. Em seu livro “The Myth of the Machine”, ele identifica as “mega-máquinas” como “an archetypal machine made of human parts”, usando como exemplo a construção das pirâmides do Egito, em que milhares, senão milhões de homens serviram como meras engrenagens dessa imensa máquina figurativa. Profeticamente, ele afirma que as elites, futuramente, iriam buscar a criação de uma estrutura destinada a operar automaticamente, usando as pessoas comuns como engrenagens.
[…] the dominant minority will create a uniform, all-enveloping, super-planetary structure, designed for automatic operation.
A sociedade moderna seria mais uma dessas mega-máquinas, onde os homens mais uma vez são apenas peões, utilizados para que a máquina se torne cada vez maior e mais poderosa. Para qual fim? Para Mumford, a mega-máquina é, de certa forma, algo sagrado, um fim em si mesmo, e é aí que ele introduz o conceito do “mito da máquina”:
The one lasting contribution of the megamachine was the myth of the machine itself: the notion that this machine was, by its very nature, absolutely irresistible - and yet, provided one did not oppose it, ultimately beneficent.
Essa é, provavelmente, a análise mais profunda de Mumford. A máquina moderna não sobreviveria, nem teria um fim sem um mito. Esse mito é a ideia de um crescimento eterno, uma centralização cada vez maior, que destrói tudo ao redor em favor da superação de novos limites, de uma acumulação de bens materiais, tecnologia e progresso em todas as esferas: o mito da máquina é o herdeiro espiritual de Babel, do qual a religião secular progressista é apenas mais uma manifestação. Toda a vanguarda, no pior sentido, está na metrópole. Retornando a “The City in History”, vemos, contudo, que Mumford não julgava que tudo estivesse perdido:
But the cyclic process we are in the midst of is not necessarily a fixed and fatal one. On this fact all wise-plans must be based. Our modern world culture, with its ever deepening historic sources and its ever widening contacts, is far richer in still unused potentialities, just because it is world wide, than any other previous civilization.
Ele acreditava que, restaurando o foco no aspecto humano, haveria um caminho de salvação, e é aqui que seu pensamento diverge daquele que tem a visão mais pessimista da cidade e da civilização, o filósofo alemão Oswald Spengler. Sua análise é bastante complementar à de Mumford. Em primeiro lugar, Spengler destaca como a história do mundo é a história das cidades, usando como exemplo a Roma antiga para mostrar que os eventos históricos só adquirem significado quando contrapostos à cidade:
It follows, however — and this is the most essential point of any — that we cannot comprehend political and economic history at all unless we realize that the city, with its gradual detachment from and final bankrupting of the country, is the determinative form to which the course and sense of higher history generally conforms. World history is city history.
[…]
Caesar might campaign in Gaul, his slayers in Macedonia, Antony in Egypt, but, whatever happened in these fields, it was from their relation to Rome that events acquired meaning.
Spengler explica que o campo representa o vital, o sangue e a tradição, enquanto a cidade é o intelecto, o racionalismo frio onde o dinheiro determina a hierarquia social. Esse racionalismo projeta a cidade como o lugar de maior importância no território, com influência até sobre sua organização política.
The city is intellect. The Megalopolis is “free” intellect. It is in resistance to the “feudal” powers of blood and tradition that the burgherdom or bourgeoisie, the intellectual class, begins to be conscious of its own separate existence. It upsets thrones and limits old rights in the name of reason and above all in the name of “the People,” which henceforward means exclusively the people of the city. Democracy is the political form in which the townsman’s outlook upon the world is demanded of the peasantry also.
Contrapondo a “cultural city” à “world city”, ele mostra como a primeira é resultado de um modo de vida mais vital, orgânico e vinculado às tradições, e a segunda o ambiente que coopta o homem outrora “cultural” e lhe toma os valores que lhe proporcionavam propósito e coesão social.
The stone Colossus “Cosmopolis” stands at the end of the life’s course of every great Culture. The Culture man whom the land has spiritually formed is seized and possessed by his own creation, the City, and is made into its creature, its executive organ, and finally its victim.
Impossível não perceber aqui o paralelo com a a análise, citada acima, que Leon Kass faz de Babel, quando ele afirma que o homem é tanto criador como criatura da cidade; ele termina, para Spengler, como “vítima” dela. É uma visão pessimista e profética. O resultado final do homem retirado do seu contexto original é a esterilidade e, em última instância, o fim de sua própria civilização:
When the ordinary thought of a highly cultivated people begins to regard “having children” as a question of pro’s and con’s, the great turning point has come. For Nature knows nothing of pro and con. Everywhere, wherever life is actual, reigns an inward organic logic, an “it,” a drive, that is utterly independent of waking being, with its causal linkages, and indeed not even observed by it.
[…]
This, then, is the conclusion of the city’s history; growing from primitive barter center to Culture city and at last to world city, it sacrifices first the blood and soul of its creators to the needs of its majestic evolution, and then the last flower of that growth to the spirit of Civilization — and so, doomed, moves on to final self-destruction.
Essa frase merece uma repetição e uma (livre) tradução:
“Quando o pensamento costumeiro de um povo altamente culto começa a considerar “ter filhos” como uma questão de prós e contras, o grande ponto de virada chegou.”
Não à toa, vemos como a queda nas taxas de natalidade historicamente precedeu colapsos civilizacionais. Para Spengler, o homem da cidade não tem qualquer conexão com a terra, portanto nenhuma razão para atender ao chamado do sangue de se perpetuar na terra com a qual está ligado. O filósofo alemão é certeiro ao identificar a metrópole como a mecanização da vida humana, a desvitalização do homem rumo à “petrificação”, à perda total da “alma” em prol do “intelecto”, nos termos usado pelo próprio. Numa belíssima frase, Spengler captura o sentimento de inquietação que acomete, de quando em quando, aqueles que, ao caminhar em meio ao concreto, à fumaça e ao barulho, se fazem perguntas difíceis:
In these cities there is no Soul. They are land in petrified form.
Para ele, o declínio é irreversível. O sintoma da metrópole revela não um processo que pode ser revertido, como acreditava Mumford, mas o sinal de uma doença terminal, um mal espiritual, o destino trágico e inevitável, confirmado pela história humana, das civilizações. Mumford, entretanto, rejeita a visão fatalista e a solução de Spengler, como escreve em um de seus ensaios:
The processes of self-repair, self-renewal, self-transcendence, which are as observable in cultures as in persons, were completely overlooked by Spengler . His many vital perceptions of the historic process served only one purpose which he kept steadfastly in view: as apology for barbarism.
[…]
Was there no way for life, then, to reassert itself? Spengler answered Yes: by brutality, by brutality and conquest. The sole outlet open to the victims of civilization was to replenish their barbarism and consummate their will-to-destruction.
Por outro lado, nesse mesmo texto, mais adiante, ele reconhece a capacidade preditiva de Spengler, em oposição a pensadores mais “otimistas”:
[…] Spengler predicted, far more accurately than hopeful philosophers, the disastrous downard course that modern civilization is still following, at a steadily accelerating pace.
Que a metrópole moderna evidencia uma decadência civilizacional, creio que não resta dúvidas. Ela é o resultado do mal espiritual que começou em Babel, e ainda antes - a tentação inicial, a proposta da serpente: sereis como Deus. Na busca por prolongar sua existência e até eternizá-la, o impulso tecnocientífico do homem o torna cada vez mais independente, mais seguro de si, as suas distâncias se encurtam e seu tempo parece prolongar-se. Não é à toa que algo como a ideia de que se pode transferir a consciência para uma máquina, e então viver eternamente, seja vista como o ápice da tecnologia humana. Há até quem veja na IA a evolução natural da espécie humana. Se Deus limitou os anos do homem, este o desafia, dizendo que pode viver eternamente. De certa forma, é desse impulso, dessa soberba, que vem Babel, um tipo da mega-máquina: “façamo-nos um nome”. O mito da máquina torna o progresso e o avanço tecnológico fins em si mesmos, alimentando um processo de centralização irrefreável, observável em cada aspecto da vida humana. A maioria dos participantes do debate público, de qualquer lado do espectro político-ideológico, subscrevem a esse mito, ainda que despercebidos.
Tenho certeza que alguém pensará que eu acredito que devemos sair das grandes cidades e ir para as pequenas, ou, melhor ainda, para o campo. Não é bem isso. Quem puder fazê-lo, que o faça, contudo, o que pretendi mostrar é que o estado atual das metrópoles só reflete o fim de um ciclo, o crepúsculo de um mundo que parece aproximar-se do fim. Neste cenário, qualquer ação contrária, rumo à agregação, à construção, é bem-vinda. Mesmo que a metrópole seja inevitável, e que muitos de nós não possamos sair dela devido ao trabalho e outras questões, podemos ainda assim criar nossos jardins. Ir à Igreja, claro, mas não só isso. Cultivar amizades, grupos de pessoas com os mesmos interesses e o mesmo alinhamento, se é que me entendem. Se possível, morar em regiões próximas. Precisamos criar grupos, clubes de leitura, de estudos, o tema pouco importa, desde que consigamos inventar razões para nos encontrarmos. Presencialmente. Para isso, é necessário mudar nossas prioridades, nossa hierarquia de valores, como dito de forma muito mais concisa por Weaver, no seu livro já citado:
Quando as pessoas tomam como valor mais elevado as relações interpessoais, não leva muito tempo até que elas encontrem acomodações materiais para essas relações. Aqui estamos lidando - como em todos os outros pontos - com nossa avaliação da boa vida.
Se, antigamente, o homem vivia onde a natureza permitia, hoje, a natureza vive onde permitimos, nos parques, jardins e praças. Mesmo num ambiente estéril e mecânico, ainda podemos priorizar as coisas certas, escolher os bens superiores, multiplicar o que é vivo e verdadeiro. Lutaremos para impedir o colapso da nossa civilização, ou aceitaremos que ele é inevitável, e simplesmente cuidaremos de nós mesmos? Acredito em uma terceira opção: cultivar e guardar o jardim.
Na ficção pós-apocalíptica, quando a humanidade é dizimada por algum desastre natural ou holocausto nuclear, invariavelmente vemos a natureza retomar seu espaço, em meio aos prédios e ao asfalto. Pelos exemplos semelhantes que encontramos na vida real, é de se supor que de fato, assim ocorreria. Hoje, aos poucos, a civilização da metrópole se desfaz. Talvez ela não possa - ou nem deva - ser salva. Talvez, se apenas cuidarmos dos jardins, as raízes do bom, do belo e do verdadeiro - quarteirão por quarteirão, bairro por bairro - possam reivindicar o seu lugar.
Referências:
Jacobs, Jane. “The Death and Life of Great American Cities” (1961)
Kass, Leon R. “The Beginning of Wisdom: Reading Genesis” (2003)
Mumford, Lewis. “The City in History: Its Origins, Its Transformations, and Its Prospects” (1961)
Mumford, Lewis. “The Myth of the Machine Vol. 1: Technics and Human Development” (1967)
Mumford, Lewis. “Interpretations and forecasts 1922-1972” (1973)
Spengler, Oswald. “The Decline of the West” (1923)
Weaver, Richard M. “As ideias tem consequências” (1948)
Citações bíblicas: (Gênesis capítulos 3, 4,11, 19; Epístola aos Romanos 1:20)
Eu gostei muito deste texto. É impressionante como dialoga e se conecta em diversos pontos com o artigo que também escrevi. De fato a pólis moderna é uma abominação anti-humana. Eu também vivo em São Paulo e foi morar aqui que me deu a "redpill" definitiva quanto a realidade do urbanismo, me fazendo pensar seriamente num plano de retorno ao campo. Nossa cultura está gravitacionalmente presa pelo deus faminto do conforto, enquanto somos pouco a pouco isolados uns dos outros. É engraçado pensar que vivem mais pessoas em condomínios em São Paulo que em muitas vilas medievas, e, mesmo com a obscena proximidade física dos apartamentos, as famílias nunca estiveram tão distantes. Por fim, gostei muito de como você conectou a história de Caim, Bebel e Abraão como simbologia espiritual para exposição sobre a cidade.
Um ótimo texto. Estava agora mesmo escrevendo - vou publicar mais para o fim do dia - sobre as relações entre corpo, alma e espírito. As grandes metrópoles são cada vez mais um corpo, apenas. O mais elevado, espiritual, já há muito tempo não existe nas grandes cidades em si: somente nos espaços privados. Mas mesmo a alma - entendida justamente como uma cultura, alguma coesão em termos de valores etc. - também já não existe (talvez somente em alguma medida em bairros mais afastados das regiões centrais). Sobra o corpo, a matéria, a máquina: trabalho, relações superficiais etc.