Houve um tempo em que shows de mágica eram extremamente populares. A preparação, a expectativa, a revelação, o êxtase, levando a aplausos efusivos, diretamente proporcionais à pressuposição fantástica assumida: fazer um homem desaparecer de dentro de um grande caixote não provocava o mesmo deslumbramento que fazê-lo sumir sentado em uma cadeira após ser coberto com um lençol. Quanto mais improvável o truque, de acordo com nossas premissas científico-materialistas, mais o mágico era louvado. Vimos homens como Houdini e David Copperfield surgirem, ganharem fama e despertarem admiração, deixando milhões de pessoas maravilhadas ao redor do mundo. No entanto, muita coisa mudou com a chegada da era moderna. De repente, nos tornamos críticos demais, científicos demais, céticos demais, para nos deixarmos impressionar até pelo mais elaborado dos truques, certos de que todos eles não passavam de mera ilusão. Lembro-me claramente quando o personagem “Mister M” surgiu na televisão, desvendando os truques mais impressionantes e conhecidos, e o que antes fora lindo e poético se tornara vazio e enganoso, e, aos poucos, os mágicos e seus shows interessavam muito pouca gente.
Este é um exemplo que ilustra bem uma das marcas da modernidade, o ceticismo direcionado a todo e qualquer fato que possa parecer fantástico ou inusitado. E o fenômeno piorou ainda mais nos últimos anos: se antes houve a necessidade de um Mister M que criasse seu próprio show, hoje milhões de anônimos na internet agem como o personagem, e é praticamente impossível não encontrar nos comentários dos vídeos de truques de mágica alguém que imediatamente os desvende, ou mesmo artistas que se dediquem apenas a isto, nos seus canais no youtube. Quando há acontecimentos que de fato fogem a qualquer hipótese científico-materialista, a primeira possibilidade considerada é: o vídeo é falso, é obra de manipulação e efeitos especiais. A era da internet é a era do ceticismo disseminado, e este ceticismo, vejam só, não se dirige apenas ao presente, mas também ao passado. Vivemos uma era em que milagres não seriam suficientes para convencer. Se Jesus Cristo viesse em nosso tempo, andando sobre as águas, curando, ressuscitando mortos, não há sombra de dúvida que tudo isto seria não apenas posto em dúvida, mas também Ele seria classificado como um charlatão, um enganador, um ilusionista. A geração que se julga a mais científica da história duvidaria de pronto de qualquer evidência física atestando a existência do sobrenatural. Diversos ateus famosos já admitiram que não há qualquer evidência que os faria mudar de ideia com relação à existência de Deus, chegando um deles a afirmar que, se o próprio Deus viesse, com fogo e luzes, e uma voz aterradora, dizendo ser Deus, ainda assim consideraria como hipótese principal estar experimentando uma alucinação.
A única coisa com a qual não identificamos ceticismo algum, é com relação ao futuro. Acreditamos que o progresso nos levará a conquistar o universo, acabar com a fome, as guerras, que um dia encontraremos a cura de todas as doenças, do corpo ou alma, que viveremos eternamente etc. É fácil entender o porquê: acostumados a ver a ciência resolver problemas, confundimos progresso tecnológico com progresso em geral e pensamos que dela virá a solução de tudo, desde que se dê tempo aos especialistas. Se, por mais um pouco, conseguirmos manter nosso mundo secularizado, ateu e científico, alcançaremos um ponto de não-retorno, ou uma singularidade, em que a tecnologia nos permitirá, de uma vez por todas, erradicar todos os nossos problemas humanos e enfim, viveremos uma utopia, um paraíso na terra livre de violência, doenças e trabalho. Há pessoas que acreditam fielmente nesta promessa, e são justamente as que se dizem arreligiosas e antiteístas.
É claro que, com o passar do tempo, ao contrário do que ocorreu com a primeira vinda de Cristo, na qual as promessas do antigo testamento foram se cumprindo, a modernidade não só não trouxe a utopia, como parece cada vez mais longe de consegui-la. Mentes mais aguçadas entre os secularistas já perceberam a ingenuidade de quem ainda acredita nela, e, diante da evidente impossibilidade de atingi-la, passaram a propor, em linhas gerais, três caminhos – entenda-se, não estou dizendo que há apenas três caminhos para a humanidade, mas sim para estes homens seculares que não admitem a existência do divino e do espiritual, e que no entanto entendem que os rumos atuais da humanidade são tenebrosos – o primeiro é a negação total de qualquer religião, sejam as tradicionais, sejam o progressismo e outras ideologias, em prol de um cientificismo técnico. Esta ideia falha pelo simples fato de que um ser humano irreligioso é simplesmente uma impossibilidade, qualquer pessoa que respire tem seu conjunto de crenças, não importa a veemência com que negue o fato. É mais do que evidente que a ciência não tem uma resposta para o problema moral. O segundo caminho consiste em um nihilismo futurista que vê o homem como problema, e entende que a única solução é desaparecermos como espécie, dando lugar à singularidade. O terceiro caminho, porém, é o de algumas pessoas mais perspicazes que se deram conta de uma verdade difícil de aceitar para o homem moderno: o cristianismo é insubstituível. Estes perceberam que, sem um sistema de crenças que tenha raízes históricas e bases metafísicas sólidas, que englobe não só uma tradição teológica, mas também filosófica, estaremos à mercê da religião do progressismo e possivelmente criaturas piores que possam surgir quando este mesmo progressismo não entregar a realização de suas promessas de igualitarismo e emancipação. Buscam uma possível fusão do cristianismo com Nietzche, querem rejeitar a moral cristã por julgarem-na fraca, porém manter o seu corpus mitológico, sua liturgia e seus pressupostos de ordem cósmica. É sobre estes últimos que me debruço neste ensaio.
Em primeiro lugar, nada há mais diferente do que a moral Nietzcheana e a cristã. Apesar da crítica extremamente aguçada sobre o problema da moral e um diagnóstico certeiro da desesperadora condição do homem moderno, o filósofo alemão abominava os ensinamentos de Jesus Cristo como uma moral para escravos e mulheres, pois esta prega a submissão, o pacifismo e a abnegação. Para Nietzche, o übermensch deveria transcender esta moral e ser um homem de ação, de vontade de poder, mais próximo do ideal pagão dos deuses gregos. Napoleão, Hitler, Stalin, todos provavelmente se encaixariam no ideal de homem do filósofo – não que ele aprovasse os atos e o ideal político de qualquer um deles. Em segundo lugar, e aqui, o cerne da questão, tentar apropriar-se do cristianismo para um propósito utilitarista de prescrição civilizatória é negar justamente aquilo em que ele foi mais bem-sucedido: não como um guia normativo político, e sim como um guia espiritual que encerra em si a conciliação entre o uno e o múltiplo, entre o individual e o coletivo. Jamais se poderia extrair instruções de como a humanidade deveria se organizar politicamente dos ensinos de Jesus Cristo. Há cristãos em toda parte: entre os nórdicos, os índios brasileiros, os esquimós da Groenlândia, entre os japoneses de Hiroshima, os Etíopes etc. Todos experimentaram ascensão moral, abandonando práticas contrárias à doutrina cristã, mantendo, contudo, sua língua, sua arquitetura, até sua organização social e política. O projeto cristão não é um projeto político, como o próprio Cristo deixa claro, mas sim um projeto espiritual: o reino de justiça, paz e alegria virá no fim dos tempos, e sua origem será celestial, não terrena.
Querer insistir em um atalho para validar a moral cristã, como o fez René Girard com sua tese do bode expiatório é negar-lhe o aspecto fantástico, paradoxal e espiritual. Ao explicar o truque, a mágica perde totalmente seu efeito. Aqui, não só o francês erra, como também aqueles que buscam embasar a fé cristã em achados científicos ou proposições filosóficas. Ao fazer isto, tiram dela o que tem de único e radicalmente oposto à modernidade: a transcendência. O apóstolo Paulo, ao lidar com determinada oposição em uma igreja, disse: “em breve, irei ter convosco, e conhecerei não a palavra, mas o poder dos ensoberbecidos. Porque o reino de Deus consiste não em palavra, mas em poder”. E, em outro trecho, criticando alguns de certa igreja: “tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes”. E, para completar: “a nossa pregação não consistiu em linguagem persuasiva, mas em demonstração de espírito e de poder, para que a vossa fé não se baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus”. É preciso falar algo mais?
Veja, não quero aqui condenar os que buscam essa convergência da doutrina cristã com a filosofia clássica, afinal, a verdade é una, e não é de espantar que as maiores inteligências da história tenham se aproximado da verdade pela via do intelecto. No entanto, as escrituras deixam claro que “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.” Este trecho, além dos outros que citei, evidenciam que há um limite para o intelecto, para o que podemos apreender pela razão. Alguns dirão que dar ênfase ao Espírito em detrimento da Mente é perigoso e pode levar ao pentecostalismo e à defesa de experiências subjetivas - êxtases e revelações - como evidências concretas. Há quem diga que sequer existem tais experiências, considerando-as todas fabricações da mente. Esta assunção, no entanto, ocorre devido a um erro na compreensão da essência do homem e das partes que o compõem, à luz das escrituras, pois uma coisa é ouvir com os ouvidos, outra é entender com a mente e outra, muito diferente, é ter a revelação da palavra no espírito. Na primeira epístola aos Coríntios, Paulo afirma: “mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam. Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente. Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais.” Mais uma vez o apóstolo faz a distinção clara entre coisas espirituais e coisas ensinadas pela sabedoria humana.
Por que então, a dedicação a elaborar argumentos lógicos intrincados, axiomas que provem as verdades divinas, tratados teológicos monumentais? Isto é também, uma marca da secularização. Ao se deparar com as estranhas verdades cristãs, alguns julgam que precisam explicá-las de uma forma mais palatável à razão, contudo se esquecem de que “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura”. Estes, na verdade, são racionais demais, e recusam-se, no seu íntimo, a aceitar que a fé é “a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem”. Vivemos absolutamente pelos nossos sentidos e pela nossa inteligência, e ambos não são satisfeitos pela forma como Deus se mostra através das escrituras. Não é que as coisas de Deus não sejam primeiro entendidas pela mente, mas ninguém tocará o divino ao entender uma fórmula matemática. A Palavra não é como qualquer tratado de filosofia, e sim uma pessoa viva, com a qual se deve conversar e desfrutar a presença. Nada pode substituir a experiência subjetiva de tocá-la.
Há muitos homens simples e sem instrução, mas que de fato ouvem e veem, e recebem revelação, e os racionalistas buscam complicar as coisas para que só eles, homens de intelecto privilegiado e erudição, possam se dizer entendedores da verdade, possuidores de um conhecimento elevado, restrito a pouquíssimos sábios. Mais uma vez, quem joga a pá de cal é o apóstolo Paulo: “Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus.” Racionalizando demais a fé, tais homens agem como aqueles que desvendam o truque de mágica, pensando que, com isso, produzirão o mesmo efeito, no entanto, tentar desvendar o truque anula o efeito da revelação e do fantástico.
Há, contudo, uma diferença fundamental entre desvendar o truque de mágica e desvendar os mistérios divinos: estes últimos não podem, e jamais poderão, ser explicados de um ponto de vista puramente filosófico-racional ou materialista-empiricista, e esta verdade é difícil de aceitar, pois cria um grande problema aos racionalistas: toda e qualquer explicação que encontrarem será insuficiente, e por fim, como partem do pressuposto errado, pensando que através da razão é possível tocar a Deus, continuarão a adentrar esse caminho, o que resultará em frustração e, no fim de tudo, numa soberba defensiva, no ateísmo, ou num cristianismo procedural, performando ritos, sem contudo desfrutar a realidade espiritual. Talvez estes que racionalizam a crença pensem torná-la mais aceitável ao homem secular, e, assim, mantê-la viva em meio à notória desintegração espiritual pela qual passa o mundo. Erram, porém, assim como erram os que querem utilizar o cristianismo como arma política e sociocultural.
Quando Moisés realizou poderosos sinais diante do faraó, os seus magos imediatamente utilizaram suas ciências ocultas para fazer a mesma coisa, numa tentativa de mostrar que as pragas não eram obra de Deus, e sim de homens. Isto fica claro quando, após a terceira praga, ao falhar em copiá-la com suas ciências ocultas, eles afirmam: “isto é o dedo de Deus”. Há um limite para o que o saber humano pode conseguir ao copiar o poder de Deus. Em algum momento, percebemos: “isto é o dedo de Deus.” Os homens, de um lado, agem como os magos tentando mostrar que as coisas fantásticas a respeito do universo são demonstráveis e reprodutíveis de forma empírico-científica, e de outro, agem como eles tentando secularizar o poder de Deus, isto é, retirar dele seu aspecto fantástico e transcendente, mostrando que por uma via humana, filosófico-racional, é possível alcançá-lo.
Enquanto isso, uma criança, maravilhada, vê o mágico restaurar a vista a um cego, e conclui sabiamente que não há qualquer explicação natural para o acontecido, nem uma outra via que torne aquilo possível, a não ser o poder divino. É um milagre.
Gostei muito do artigo, me lembra do conceito do salto de fé de Kierkegaard, mas me resta uma dúvida, seria a escolástica a primeira tentativa de racionalização da fé? As cinco vias tentam, "embasar a fé cristã em achados científicos ou proposições filosóficas" ou há uma diferença que não estou percebendo? Pra ser sincero, eu consigo imaginar isto, pois por mais que a cinco vias "provem" a existência de Deus, elas por si só não são o suficiente para te dar a fé que aquelas senhorinhas que sempre vão igreja, professam sem conhecer nada disso.