“We do not talk to say something, but to obtain a certain effect”
Joseph Goebbels
Falar de política em qualquer rede social é ficar a par de uma triste constatação: as pessoas não se entendem mais. Se fosse só isso, talvez ainda houvesse salvação, talvez pudéssemos, através da definição dos termos nas discussões, falar a mesma língua, entender que há pessoas do “outro lado” que não querem coisas tão diferentes assim, mas o problema é maior, a localização do proverbial buraco é muito mais inferior do que se imagina, pois, além da crise na compreensão mútua, as gentes de lados opostos da cerca do radical de centro se veem, invariavelmente, como inimigas, e o Palmeiras x Corinthians eterno pauta o debate político, e o empobrece tanto ou mais do que o debate entre Mancha Verde e Gaviões da Fiel, em que pese a complexidade muito maior da política em relação ao futebol (ou seria o contrário?). Lembro sem um pingo de saudade da minha breve época no twitter, a tristeza que me acometia ao ver como o diálogo é raro entre os seres humanos, como é uma ficção essa história iluminista do mercado de ideias, das discussões racionais, da escolha pelo argumento mais bem encadeado, menos falacioso, mais robusto, mais rigoroso, e tantos mais adjetivos bonitos quanto se puder encontrar. Eu entrava em algumas discussões políticas e ideológicas, acredite em mim, de boa fé, genuinamente interessado em entender o “outro lado” e conversar, procurar caminhos, levantar pontes entre grupos que encampavam ideais opostos. Infelizmente, a regra era o degringolar (que belo termo!) para o ad hominem, a fuga do debate, os bloqueios e reports por parte dos meus interlocutores, que, tal qual o gordinho dono da bola, apelavam covardemente e iam embora. Pouquíssimas vezes pude, de fato, conversar com alguém sem que a pessoa descambasse (outra pérola!) para a violência virtual do “keyboard warrior”. A minha tristeza não era por me sentir ofendido ou algo do tipo, e sim por identificar uma total desumanização dos indivíduos no ambiente virtual, o abandono de qualquer concepção de respeito à dignidade humana quando se tratava do oponente. Veja, não eram anônimos, eram pessoas que colocavam seus nomes e sobrenomes, fotos de suas verdadeiras faces, e diziam que uma avó merecia ser presa por acampar em frente a um quartel, que um jornalista e toda sua família mereciam morrer, que “bolsonar/negacion/fasc/ista não é gente”, entre tantas outras coisas que me fizeram perder um pouco mais a fé na humanidade. Vi uma jovem delatar publicamente uma tia que alegadamente esteve em um certo lugar num certo dia oito, pessoas marcando um certo juiz em uma discussão para que “fosse pra cima” dos discordantes, entre outras manifestações de amor e ternura. Ah se fosse o caso de delatar um assaltante ou traficante, as mesmas pessoas não teriam ânimo semelhante.
Há um limiar a partir do qual criamos brechas que, uma vez abertas, dificilmente podem ser fechadas. Esta era a semente da tristeza: perceber por quão pouco as pessoas abandonam princípios básicos de compaixão, em mais uma prova empírica da falha miserável do humanismo secular. Os humanos do século XXI gostam de pensar que, num regime totalitário, manteriam suas convicções e não seriam manipulados pela propaganda, seriam heróis da resistência, abrigando perseguidos do regime, protegendo oprimidos, agindo nas sombras para derrubar a ditadura. A realidade é que a maioria, infelizmente, sucumbiria facilmente e passaria a enxergar os inimigos do regime como inferiores, inumanos até, e se converteriam rapidamente em delatores - dedos-duros, para usar mais uma expressão afiada da língua portuguesa. Se estivéssemos numa situação como essa, veríamos alguns entregando parentes e amigos, considerando justificadas prisões arbitrárias e julgamentos políticos. É exagero dizer que vivemos um momento semelhante? Mas, o que nos trouxe até aqui? E, mais importante, há como retornar?

A resposta para essa pergunta - e muitas outras - parece estar na propaganda. Recentemente, através do substack do Kruptos, descobri o livro “Propaganda - The Formation of Men’s Atitudes”, do filósofo francês Jacques Ellul. Tenho muito interesse no tema, e já havia lido algumas coisas a respeito, mas nada muito profundo. Do autor, conhecia “The Technological Society”, um trabalho que dialoga bastante com a obra de Lewis Mumford, que já citei em outras ocasiões. Como a série do Kruptos estava com paywall, exceto a primeira parte, decidi ler a obra, e ainda bem que o fiz: é brutal. Este ensaio é uma tentativa de expor os principais pontos desta obra do filósofo francês, e através dela jogar luz sobre alguns fenômenos da atualidade. Antes de mais nada, é preciso ressaltar que quando Ellul fala sobre propaganda, é sobre um aspecto bem específico e restrito, qual seja, seu aspecto político e de controle e dominação de populações (se poderia chamar “psy-ops”, para usar um termo da moda). Ao longo do livro, conhecemos sua visão da ferramenta, que é extremamente pessimista; é seguro dizer que na visão do filósofo este é um dos grandes males da sociedade moderna tecnológica. Nisso, ele difere um pouco de outros autores mais conhecidos que discorreram sobre o tema, como Walter Lippmann e Edward Bernays; o primeiro tem uma abordagem mais pragmática, descrevendo o fenômeno e suas aplicações, enquanto o segundo vê a propaganda como algo essencial, uma ferramenta muito útil principalmente nas democracias modernas.
A análise de Ellul começa com a explicação de que a propaganda não visa, como erroneamente costuma se pensar, mudar a forma como as pessoas pensam, e sim, a forma como agem. Segundo a definição que ele empresta de Harold D. Lasswell, a propaganda visa
“To maximize the power at home by subordinating groups and individuals, while reducing the material cost of power”
Isso significa, na prática, que o objetivo da propaganda é suavizar as relações entre as pessoas e o estado, “engraxar” a máquina para que funcione sem ruído e desgaste das peças. Assim, ela é uma tentativa de obter a obediência com mínimo uso da força. Na guerra, afirma Ellul, ela é um suplemento à violência física; na paz, é seu substituto.
Costumamos pensar que a propaganda é algo orquestrado e deliberado com objetivos bem definidos, um recurso criado especificamente para manipular as pessoas em direção a caminhos que elas nem sempre gostariam de trilhar, no entanto, Ellul afirma que a propaganda é mais uma técnica, uma condição inerente ao desenvolvimento da tecnologia e ao estabelecimento de uma civilização tecnológica. A tecnologia permitiu imensas populações nos países modernos, bem como tornou-as muito mais interconectadas. Para mantê-las na linha, a propaganda surge quase que como algo “fisiológico”, uma resposta necessária a um problema. “It’s not a bug, it’s a feature”.
“Propaganda is called upon to solve problems created by technology, to play on maladjustments, and to integrate the individual into a technological world. Propaganda is […] the effect of a technological society that embraces the entire man and tends to be a completely integrated society. Propaganda must be seen as situated at the center of the growing powers of the State and governmental and administrative techniques. […] In the midst of increasing mechanization and technological organization, propaganda is simply the means used to prevent these things from being felt as too oppressive and to persuade man to submit with good grace. When man will be fully adapted to this technological society, when he will end by obeying with enthusiasm, convinced of the excellence of what he is forced to do, the constraint of the organization will no longer be felt by him; the truth is, it will no longer be a constraint, and the police will have nothing to do. The civic and technological good will and the enthusiasm for the right social myths - both created by propaganda - will finally have solved the problem of man.”
Estudar esse fenômeno requer que se olhe os exemplos práticos, pois não existe, segundo o filósofo, uma propaganda direcionada utilizando um método particular: a propaganda, por definição, é algo que engloba toda uma população e todos os meios de comunicação disponíveis1. Daí a impossibilidade de se realizarem experimentos científicos para estudá-la, pois a partir do momento em que um método particular de propaganda é aplicado a um grupo pequeno, ele deixa de ser propaganda. Assim, se quisermos estudar propaganda,
“[…] we must turn not to the psychologist, but to the propagandist; we must examine not a test group, but a whole nation subjected to real and effective propaganda.”
Por essa razão, Ellul enfatiza a necessidade de analisar os grandes sistemas de propaganda da história, presentes nos regimes totalitários da Alemanha de Hitler, da Rússia de Stalin, e da Itália facista de Mussolini. Contudo, como já vimos, ele não considera, tal qual alguns críticos e historiadores, a propaganda como arma exclusiva destes regimes, e sim, como dito acima, algo presente em toda e qualquer sociedade tecnológica, ou seja, com um certo nível de desenvolvimento. Assim, a propaganda feita pelo regime liberal-democrático será também objeto de estudo do autor. A democracia é uma das primeiras ilusões dissipadas, ao menos quando entendida nas suas representações modernas. Isso porque ela é sustentada pela crença de que o homem é um agente independente, e é inadmissível a ideia de que ele é extremamente manipulável e influenciável pela propaganda, pois se assim for, todo o conceito de soberania da vontade popular cai por terra. Ellul, apesar de dizer acreditar na preeminência do homem, percebe que este é
“[…] terribly malleable, uncertain of himself, ready to accept and to follow many suggestions, and is tossed about by all the winds of doctrine.”
Ele deixa claro, porém, que não é “anti-democrático”, apenas está fazendo uma análise fria, sem juízo de valor. A força da propaganda, porém, revela uma das principais falhas da democracia, e o filósofo lamenta que
“propaganda renders the true exercise of it almost impossible.”
Como já afirmei em outras ocasiões, a propaganda visa produzir o consenso, dar a aparência de legitimidade ao regime, e quando o povo se desvia do “script”, vemos a substituição desse método pacífico pela força, como atualmente evidente em todo o ocidente, exemplos mais evidentes disso Brasil, França, Romênia, Reino Unido e Alemanha. Lawfare, prisões arbitrárias, censura, cancelamento de eleições, são todos recursos custosos ao regime, e pode ter certeza que, se apelaram a isso, é porque a propaganda falhou, o que por sua vez decorre do surgimento de uma mídia descentralizada, independente - até certo ponto - e difícil de controlar, nomeadamente, as redes sociais. Com os antigos meios de massa, a TV, rádio, jornais e revistas, era muito mais fácil produzir o consenso e fingir que a vontade do povo estava sendo feita; após o advento das redes, isso se tornou uma tarefa hercúlea, e não é coincidência o avanço do populismo de direita no mundo ocidental, dado que, em primeiro lugar, mesmo com todos os seus problemas, o movimento é mais próximo a formas de vida mais orgânicas e mais reais, e, em segundo lugar, passou a mostrar que a vontade do povo não estava sendo feita, nem de perto, nas democracias modernas. A máscara finalmente caiu: não há no mundo uma democracia sequer. Quando vemos esse panorama, entendemos porque a prioridade máxima dos governos liberais do ocidente é regulamentar as redes sociais. Ellul é pessimista com relação às democracias modernas, como deve ser de fato qualquer um que minimamente observe o rumo das coisas, mas diz que sua análise não é um ataque, antes um aviso, uma exortação para correção de rota.
Mas como a propaganda consegue ter tamanha influência sobre o homem, a ponto de manipular suas escolhas e tornar a própria noção de vontade do povo uma ilusão? Ellul disseca de forma impressionante a maneira como o homem é entendido pelo “propagandista”, e posteriormente as diversas maneiras pelas quais pode ser manipulado. Em primeiro lugar, o indivíduo nunca é considerado isoladamente, mas sempre em relação ao que tem em comum com os outros. Ele
“[…] is reduced to an average; and, except for a small percentage, action based on averages will be effectual. Moreover, the individual is considered part of the mass and included in it (and so far as possible systematically integrated into it), because in that way his psychic defenses are weakened, his reactions are easier to provoke, and the propagandist profits from the process of diffusion of emotions through the mass, and, at the same time, from the pressures felt by an individual when in a group.”
É a famigerada “mentalidade de rebanho”. O propagandista nunca considera o homem sozinho, mas sempre em relação aos outros, como parte de um coletivo com pensamentos, motivações e mitos em comum. Segundo Ellul, a propaganda moderna explora a necessidade de autoafirmação do indivíduo, mas ao mesmo tempo se aproveita da estrutura da massa em que este está inserido. Os meios de comunicação modernos têm
“this remarkable effect of reaching the whole crowd all at once, and yet reaching each one in that crowd.”
O indivíduo se sente “empoderado” pela propaganda. Ela, enquanto afirma sua individualidade e o quanto é especial e único, também apela para todas essas pressuposições que ele tem em comum com os outros; o homem passa a acreditar que é firme nas suas convicções, que pensa por si mesmo, quando na verdade ele é apenas mais um em frente à televisão ou lendo o jornal. O sujeito ideal da propaganda, afirma Ellul, é aquele que está “isolado na multidão”.
“He therefore feels himself individually concerned as a person, as a participant. The movie spectator also is alone; though elbow to elbow with his neighbors, he still is, because of the darkness and the hypnotic attraction of the screen, perfectly alone. This is the situation of the "lonely crowd," or isolation in the mass, which is a natural product of present-day society and which is both used and deepened by the mass media. The most favorable moment to seize a man and influence him is when he is alone in the mass: it is at this point that propaganda can be most effective.”
Daí vem muito da necessidade - inconsciente ou não - de tentar isolar o indivíduo, atomizá-lo. Ele, separado do seu grupo, se torna extremamente suscetível à propaganda, que tem seu máximo efeito quando consegue destruir esses pequenos focos de resistência. Daí, mais uma vez, a importância das famílias e comunidades fortes, que reiteradamente tenho afirmado.
“Propaganda cannot do much when the social group has not disintegrated.”
Para conseguir a aderência total do homem e seu isolamento, a propaganda precisa ser total. Todos os meios disponíveis precisam ser utilizados para estabelecer uma rede da qual nenhum “peixe” escape, pois cada meio é mais adequado a um tipo diferente de propaganda. Os filmes, por exemplo, são melhores para
“[…] social climate, slow infiltration, progressive inroads, and over-all integration.”
Fica mais fácil entender porque certas coisas aparecem tanto nos filmes mais recentes, numa insistência que beira a teimosia, mesmo com o recado do público muito claro no número de espectadores e em retorno do investimento. Claro, o nível de intencionalidade pode variar, mas é possível dizer a partir das considerações de Ellul que, na melhor das hipóteses, a turma que realmente acredita no “woke” está sendo apenas usada para veicular propaganda. É fácil entender também, diante dessa perspectiva, porque nenhum meio de comunicação escapa da influência da “mensagem”:
“[…] not one of these instruments may be left out: they must all be used in combination. The propagandist uses a keyboard and composes a symphony. It is a matter of reaching and encircling the whole man and all men. Propaganda tries to surround man by all possible routes, in the realm of feelings as well as ideas, by playing on his will or on his needs, through his conscious and his unconscious, assailing him in both his private and his public life.”
O homem moderno tem uma grande angústia, vivendo em uma sociedade que o oprime, pois lhe repete incessantemente que ele é “livre”, ao mesmo tempo em que lhe explora e alija dessas mesmas possibilidades, afirma que é especial e único, porém lhe trata como totalmente substituível e dispensável. Quanto mais caótico e confuso for o mundo aos olhos do homem, mais a propaganda pode tomar proveito dele, porque ela lhe fornece uma explicação, uma aparente solução para sua angústia. Uma das coisas que Ellul mais enfatiza ao longo do livro é que a propaganda sempre utiliza anseios já existentes no homem, ela nunca cria nada, apenas manipula o que já está lá, portanto responde à ânsia humana de compreender o mundo tão complexo que habita. O parágrafo seguinte talvez seja o resumo de toda a ação da propaganda sobre o indivíduo, e permite já observarmos alguns de seu efeitos:
“[Propaganda] furnishes him with a complete system for explaining the world, and provides immediate incentives to action. We are here in the presence of an organized myth that tries to take hold of the entire person. Through the myth it creates, propaganda imposes a complete range of intuitive knowledge, susceptible of only one interpretation, unique and one-sided, and precluding any divergence. This myth becomes so powerful that it invades every area of consciousness, leaving no faculty or motivation intact. It stimulates in the individual a feeling of exclusiveness, and produces a biased attitude. The myth has such motive force that, once accepted, it controls the whole of the individual, who becomes immune to any other influence. This explains the totalitarian attitude that the individual adopts - wherever a myth has been successfully created - and that simply reflects the totalitarian action of propaganda on him.”
Impossível dizer de forma melhor. A propaganda fornece um mito, uma explicação pseudorracional para todas as perguntas do indivíduo, e ela é totalmente simplificada e reducionista, pois não visa de fato iluminar e apontar o caminho da verdade, mas apenas tornar o indivíduo um poço de estereótipos, frases feitas, slogans e palavras de ordem. Essa atitude totalitária de que fala Ellul é facilmente observável ao se conversar com pessoas dominadas pela propaganda, de qualquer lado do espectro político. Veja, mesmo alguém que se diz “de centro” pode exibir a mesma radicalização. Experimente falar para um “liberal na economia e conservador nos costumes” que o livre mercado é um mito ou que a regulamentação é essencial para prevenir a concentração progressiva de riqueza. A única diferença entre os “lados”, nesse sentido, é que naturalmente o lado que exibir mais contradições internas na sua cosmovisão necessitará de mais propaganda para amansar o “convertido”. Não é coincidência que justamente quem está sob efeito mais intenso de propaganda seja mais totalitário, e esta parece ser uma boa explicação para o radicalismo do movimento “woke”. Ao tentar conversar com um fanático de qualquer orientação política, fica clara a ação dominadora da propaganda, pois sequer se pode questionar certos dogmas, e a simples alusão a ideias contrárias é muitas vezes suficiente para pô-lo em surto histérico. Sabemos agora, em linhas gerais, como alguém chega a este ponto, e mais adiante veremos em detalhes esse processo.
Ellul faz várias divisões da propaganda, considerando seus diversos aspectos, escopo e finalidade. Para os objetivos deste ensaio, utilizarei apenas três delas (há pelo menos seis2). Um dos aspectos da propaganda é a forma como atua sobre o indivíduo, principalmente do ponto de vista temporal, e pode ser dividido em propaganda direta e propaganda “sociológica”, que o autor também chama de “pré-propaganda”. A primeira visa mudar as opiniões e principalmente as atitudes do indivíduo, mas para que seja eficaz precisa ser precedida pela segunda, que é
“slow, general, seeking to create a climate, an atmosphere of favorable preliminary attitudes.”
A propaganda sociológica é o “plantar”, a propaganda direta o “colher”. A segunda jamais pode ter sucesso sem a primeira, que age, segundo Ellul,
“creating ambiguities, reducing prejudices, and spreading images, apparently without purpose.”
E precisa ser
“[…] continuous, slow, imperceptible. Man must be penetrated in order to shape such tendencies. He must be made to live in a certain psychological climate.”
Quando li isso, imediatamente me vieram à mente alguns exemplos: séries, filmes e livros que mostravam pais de família e maridos aparentemente normais, mas que escondiam segredos horrendos, desde assassinatos até estupros e outras atrocidades. “A Garota do Trem”, “Euphoria”, “The Undoing”, “Big Little Lies”, entre outros, têm como personagens principais ou secundários homens aparentemente normais, bons pais, bons maridos, bem vistos na sociedade, que na verdade são monstros. Esse é um bom exemplo de pré-propaganda. Veja, não é que os autores deliberadamente buscaram difundir essa imagem como parte de um plano malévolo arquitetado por um cabal secreto. Isso na verdade reflete a internalização de certos pressupostos que vêm à tona na obra do autor. É inconsciente, mas ao mesmo tempo não é. A repetição insistente dos mesmos padrões, em diversos tipos de mídia diferentes, prepara a estrutura mental para a propaganda direta: o “lar” não é um lugar seguro, o pai/marido não é confiável, todo homem é, no fundo, um predador. Mulheres, afastem-se dos homens. Claro, há também produções com a mensagem oposta, e assim se cria uma animosidade entre os sexos. Todo homem é um incel abusador, toda mulher é uma viúva negra aproveitadora. Da mesma forma, outras produções como “Filadélfia”, “Tootsie”, “Priscila, a Rainha do Deserto”, “Will & Grace”, “Glee”, “Brokeback Mountain” e “Transparent”, entre muitas outras, infundem o imaginário coletivo com símbolos, vão aos poucos normalizando comportamentos, criando estereótipos positivos, preparando enfim, o terreno, para quando uma lei que torna uma certa “fobia” um crime inafiançável e imprescritível, ela não só seja aceita como louvada pela maior parte da sociedade. Esta lei é apenas um exemplo. Há todo um mês dedicado a isso, bem como um “carnaval fora de época” que agrega milhões na avenida Paulista, todos os anos. Temos até cotas para trans em uma grande universidade de São Paulo. Veja, sejamos sensatos. Nenhum cristão vai defender perseguição ou agressão contra qualquer pessoa por esse motivo. No entanto, o conceito que tipifica o crime é muito subjetivo. Alguém dizer que não concorda com casamento nesses moldes é homofobia? O que se enquadra dentro da tal “fobia”? Dependendo de como se interpreta a lei (e atualmente isto é tudo o que importa), citar 1 Coríntios 6:9-10 já é motivo de cadeia desde 2019, data do entendimento do STF que equiparou a tal “fobia” ao racismo. Eu poderia citar muitas outras ficções que seguiram a linha de normalizar determinados comportamentos, mas o leitor consegue facilmente identificá-las. Nos últimos anos, a incompetência geral e a existência das câmaras de reverberação alijaram a pré-propaganda da sua sutileza, eliminando seu efeito, fato confirmado pelo público cada vez menor de produções claramente panfletárias: quem diria que as pessoas não iriam gostar de que suas idas ao cinema se convertessem em seminários de igualdade, diversidade e inclusão. Ellul também profeticamente explica isso: o propagandista, segundo ele, precisa ser frio e distante, não se envolver com a propaganda que faz, para que possa, caso necessário, mudar o discurso rapidamente; deve ser como um médico diante do seu paciente na mesa cirúrgica, selecionando suas palavras e métodos de forma puramente técnica. Ele deve evitar ao máximo o que ele chama de “autointoxicação” dos propagandistas, que
“came to believe so much in their system that they were no longer capable of considering reality; they were caught in their own trap.”
Nesse momento, o propagandista perde o poder de manipular, pois se torna vítima dos seus próprios truques. Parece ou não a descrição da patota progressista, que perdeu tanto o contato com a realidade que não entende como alguém pode simplesmente achar ruim um filme como “Madame Teia” ou as sequências de “Star Wars”? O movimento woke, como diz a expressão, “se perdeu no personagem”. Um fenômeno curioso é que os progressistas passaram a utilizar obras de ficção como evidência, num exemplo extremo do que é viver na “Matrix”, tomando a produção propagandística como realidade. O primeiro ministro britânico, Keir Starmer, aparentemente cogitou usar a série “Adolescência” para embasar propostas de políticas públicas, chamando-a, num ato falho - ou não - de “documentário”. Li dois ou três artigos cujos autores/as tratavam a série exatamente como tal.
Se parece que estamos o tempo todo diante da propaganda, é porque de fato assim é. A propaganda, para funcionar, precisa ser contínua, não permitir qualquer intervalo em que o indivíduo pare para pensar; ela deve acompanhá-lo em toda a sua jornada diária, ser constante por longos períodos de tempo.
“successful propaganda will occupy every moment of the individual's life: through posters and loudspeakers when he is out walking, through radio and newspapers at home, through meetings and movies in the evening. […] It is based on slow, constant impregnation. It creates convictions and compliance through imperceptible influences that are effective only by continuous repetition.”
A propaganda não pode permitir qualquer tempo para refletir. Os fatos se sucedem de forma que o tema mais atual provoca o virtual desaparecimento do anterior. A pandemia sumiu com a chegada da guerra na Ucrânia, que por sua vez teve o fim decretado pelo oito de Outubro em Israel. O atentado que quase tirou a vida de Donald Trump parece ter ocorrido há uma década, e na verdade não completou nem um ano. Durante a guerra da Ucrânia, toda semana havia uma ameaça de conflito nuclear, que era esquecida na semana seguinte. Então Putin ou Lavrov soltavam um novo “ultimato”, e o assunto voltava à baila. Há sempre a “bola da vez”, a “current thing”, sem que sequer tenhamos entendido as implicações do acontecimento anterior. Porque não é para entendermos, é só para reagirmos.
O homem moderno hipnotizado pela propaganda não consegue ter consciência da sua condição e muito menos da sua sociedade, pois a sucessão acelerada de eventos o prende num eterno looping que o impede de enxergar o panorama geral. Ellul é certeiro ao resumir esse fenômeno:
“One thought drives away another: old facts are chased by new ones. Under these conditions there can be no thought. And, in fact, modern man does not think about current problems; he feels them.”
Assim submetido, o homem não consegue enxergar contradições, e sua curta memória o impede de relacionar fatos sucessivos. O propagandista, afirma o autor, pode descansar tranquilo sabendo que o objeto da propaganda atual será esquecido em pouco tempo, dando-lhe margem para até mesmo dizer o oposto do que havia dito.
Entende agora por que a “mensagem” parece ininterrupta? Por que ela é empurrada goela abaixo mesmo quando todos já estão enjoados dela? A ideia é projetar imagens que componham todo o horizonte do indivíduo, oferecer-lhe uma visão de mundo aparentemente coerente, uma versão da realidade que lhe mantenha isolado, sem qualquer referência externa à propaganda. Se você lembrou do “mito da caverna”, não é por acaso. A propaganda contínua vai minando a resistência do indivíduo, aumentando sua permeabilidade à propaganda chamada “direta”, cansando sua atenção para tornar-lhe vulnerável a aceitar a “versão oficial dos fatos”. Por essa razão, coisas como a propaganda do período eleitoral são descartadas por Ellul, considerada inefetiva por ser de curta duração.
A segunda perspectiva que quero destacar é a da “transparência” da propaganda, e é dividida em propaganda “secreta” e “evidente”. A primeira
“[…] tends to hide its aims, identity, significance, and source. The people are not aware that someone is trying to influence them, and do not feel that they are being pushed in a certain direction. This is often called ‘black propaganda.’”
O segundo tipo é o revelado, há um ministério da propaganda e o governo admite isso normalmente; as intenções são declaradas. O truque ocorre quando se utiliza a propaganda evidente para esconder a secreta, isto é, admite-se a existência da primeira e de seus objetivos, mas isso é apenas
“a façade to capture the attention of individuals and neutralize their instinct to resist, while other individuals, behind the scenes, work on public opinion in a totally different direction, seeking to arouse very different reactions, utilizing even existing resistance to overt propaganda.”
Essa será, inclusive, uma manobra frequentemente lembrada pelo autor, ainda que sob outras formas. A propaganda não tem qualquer efeito se for óbvia, por isso, há necessidade de chamar a atenção para falsos alvos. Ellul traz uma citação de um dos maiores propagandistas políticos da história, Joseph Goebbels:
"We openly admit that we wish to influence our people. To admit this is the best method of attaining it."
Este será o alvo, a propaganda contra a qual se deve “resistir”, mas seu objetivo é justamente fazer com que os propagandeados vejam o outro tipo, a propaganda secreta, como não-propaganda. Da mesma forma, quem crê na mentira como condição sine qua non da propaganda, está sujeito, segundo Ellul, a ser facilmente manipulado, pois quando ouvir uma verdade, pensará que não se trata de propaganda. A questão, explica o autor, não a veracidade do fato em si, mas o seu enquadramento, algo que veremos mais adiante.
Como dito no começo da peça, o objetivo principal da propaganda não é tanto mudar as convicções do indivíduo quanto alterar o seu comportamento, suas atitudes. Ao contrário do que pensamos, a maioria das pessoas não age de forma condizente com suas ideias, e é neste desacerto que a propaganda atua. A repetição e manipulação dos símbolos e slogans lentamente cria uma via psicológica rápida, pela qual transita uma reação irracional, diante do estímulo adequado. O reflexo no sentido médico do termo é a resposta inconsciente rápida a um estímulo, como quando retiramos a mão rapidamente ao tocar a chama de uma vela. Esse tipo de reação muscular não tem origem no cérebro, e sim, na medula, pois demoraria mais do primeiro modo, o que significaria queimar os dedos. Assim como o arco reflexo é o caminho neural para a esta resposta, pode-se criar semelhantemente caminhos psicológicos para uma resposta imediata, que não passem pelo “cérebro”.
É por isso que o simples mencionar de certos nomes e certas ideias produz violentas e rápidas explosões nos tipos mais dominados pela propaganda. Certos termos são utilizados como “palavras operacionais”, nas palavras de Ellul, para evocar imagens e causar a reação medular. No entanto, elas só têm eficácia numa janela específica de tempo, e a propaganda que se utiliza delas perde poder se perder o timing de aplicá-las. Só nos últimos dez anos, já podemos listar muitas: “desinformação”, “fake news”, “negacionista”, “teoria da conspiração”, “extrema-direita”, “fascista”… Isto visa tornar o indivíduo hostil e agressivo a toda ideia externa à “Matrix” de propaganda que o circunda. Aos poucos, todas as informações que ele recebe e toda a sua concepção de mundo são filtradas pela lente viciada da propaganda, quando então o processo de manipulação está completo. É por isso que, se você pegar militantes aleatórios dos mais diversos grupos, eles parecerão todos iguais na forma de pensar. Segundo Ellul, a propaganda
“[…] does not seek to create wise or reasonable men, but proselytes and militants.”
Imagine se o propagandista tivesse que, de fato, convencer racionalmente cada um dos propagandeados3. O foco, portanto, é na ação, pois
“The individual rarely acts purely on the basis of an idea.”
Isso é confirmado pelo behaviourismo, que mostra como o homem primeiro toma a atitude de forma instintiva, depois racionaliza para justificá-la. É muito mais importante, então, exercer influência sobre as ações do que mudar as opiniões. Quando o indivíduo age pelo efeito da propaganda, ele está no caminho da doutrinação total, no processo descrito pelo autor:
“[…] action makes propaganda's effect irreversible. He who acts in obedience to propaganda can never go back. He is now obliged to believe in that propaganda because of his past action. He is obliged to receive from it his justification and authority, without which his action will seem to him absurd or unjust, which would be intolerable. He is obliged to continue to advance in the direction indicated by propaganda, for action demands more action. From then on he has enemies. Often he has broken with his milieu or his family; he may be compromised. He is forced to accept the new milieu and the new friends that propaganda makes for him […]”
Impressiona a capacidade de diagnóstico do autor, pois esta progressão é facilmente verificável na realidade: as pessoas cometem certos atos impensados, como brigar com um familiar ou então postar uma mensagem atacando e desumanizando opositores, e depois parece se radicalizar ainda mais, porque é, de certa forma, obrigado a justificar e racionalizar as ações que tomou de forma medular. Não só isso, como forma de se convencer que estava certo, ele busca mais validação, e onde ele vai encontrá-la? Claro, na propaganda. Ele segue adiante o curso traçado por ela, e cada vez mais se ofenderá com qualquer ideia que seja externa, passando a tratar aqueles do lado de fora como inimigos. Isto ocorre, que fique claro, com pessoas de qualquer orientação político ideológica. Uma grande tristeza é ver amizades e relações familiares destruídas por este tipo de divergência. Isso é a propaganda que deu errado, alguém poderia pensar. Não, isto é a propaganda que deu certo. Aqui de novo serve o mote “it’s not a bug, it’s a feature”. Se fôssemos, à luz de Ellul, escolher um só indicador que permitisse determinar o sucesso da propaganda, seria esse. O resultado final é a cristalização, na qual o indivíduo tem tanto os estereótipos, slogans, crenças e mitos, como também as justificativas necessárias para eles. A partir deste ponto, qualquer ideia nova ou contrária será vista como uma ameaça à integridade de todo o seu ser. Por isso, quem a comunica é e sempre será visto como um inimigo.
Será esse processo reversível? Dificilmente. Primeiro porque se derrubam pontes entre a pessoa e aqueles que defendem outro pensamento, e é muito improvável que se peça perdão e se volte atrás, ainda mais se certas ações provocarem consequências irreversíveis. Em segundo lugar, a supressão dos julgamentos pessoais e senso crítico é necessária para o sucesso da propaganda, portanto, eles se tornam obtusos, e não vão simplesmente reaparecer após a cessação da mesma. O cérebro já se acostumou a não pensar sobre o assunto; aqui, toda reação é puramente por meio do “arco reflexo”. Ellul afirma que
“[…] years of intellectual and spiritual education would be needed to restore such faculties.”
O indivíduo se torna apenas um repetidor de formulações prontas, não mais expressando suas próprias ideias, mas apenas a do seu grupo. A sua dissolução na massa e a projeção dos ideais coletivos em uma persona pública - um herói ou líder - o aliena de si mesmo, e torna o alinhamento com a multidão mais preeminente que as inclinações pessoais. Na porção provavelmente mais sombria de todo o livro, Ellul chega a afirmar que quando o indivíduo
“recites his propaganda lesson and says that he is thinking for himself, when his eyes see nothing and his mouth only produces sounds previously stenciled into his brain, when he says that he is indeed expressing his judgment—then he really demonstrates that he no longer thinks at all, ever, and that he does not exist as a person.”
A integração, então é total. A complementação à massificação é o culto a uma figura heroica, e não é coincidência que temos, no nosso país e em muitos outros, a criação de figuras populares vistas como justas, íntegras e defensoras dos “interesses do povo”. Veja como tanto a “direita” como a “esquerda” praticamente não existem como movimento de massa exceto dentro do culto às personalidades antagônicas. Mesmo quando isso não é tão evidente, há um tremendo esforço para projetar no candidato da vez virtudes admiradas pela sua base eleitoral. Isso, novamente, não é deliberado, e sim um efeito da sociedade tecnológica massificada.
Apesar de observarmos esse efeito em todos os propagandeados, a forma como a esquerda se conformou ao regime, principalmente na última década, é algo que chama a atenção. Esta é, sem dúvidas, uma das maiores obras de engenharia social de todos os tempos. As razões são múltiplas, e exaustivamente exploradas por este que vos fala e por outros autores melhores. Do ponto de vista da propaganda, é possível dizer que uma explicação parcial é o fato de a esquerda dominar, atualmente, os principais veículos de propaganda. Até mesmo esse enquadramento, “direita x esquerda”, é uma visão reducionista que facilita ao extremo o processo descrito acima, afinal, dá a entender que há apenas duas opções, dois lados, dois extremos. Uma característica da radicalização é a perda da capacidade de identificar as nuances nas pessoas e ideias; é frequente que “esquerdistas” só leiam livros “esquerdistas”, e “direitistas” só leiam livros “direitistas”, tudo o que não reforça a própria visão de mundo é descartado a priori. O advento das redes sociais com seus algoritmos só potencializou essa possibilidade, e criou câmaras de reverberação, as famosas “bolhas”, onde só se ouve o que reforça posições já adotadas. Não é raro, aqui no substack, que o algoritmo me sugira artigos de autores a cujas correntes político ideológicas não subscrevo. Faço questão de não silenciar ou bloquear, e às vezes leio alguns, e confesso que me coça a mão de vontade de comentar, porém acabo desistindo na maioria das vezes, porque sei que ou criarei inimizades gratuitas, ou não serei compreendido, e, na melhor das hipóteses, se eu for corretamente entendido, não causarei qualquer mudança de pensamento. Ellul concorda comigo neste ponto, mostrando que a atuação da propaganda ao “provar” que o “meu” grupo está certo e “o outro” errado produz uma progressiva divisão da sociedade. A lei básica do autor sobre isso é que
“the more propaganda there is, the more partitioning there is.”
Ela elimina o diálogo, transforma o interlocutor, na pior das hipóteses, em um inimigo, e na melhor, em um “desconhecido cujas palavras não podem mais ser entendidas”. Ellul, numa das passagens mais belas do livro, expõe sua visão acurada - e algo melancólica - do mundo das “bolhas”:
Thus, we see before our eyes how a world of closed minds establishes itself, a world in which everybody talks to himself, everybody constantly reviews his own certainty about himself and the wrongs done him by the Others—a world in which nobody listens to anybody else, everybody talks, and nobody listens. And the more one talks, the more one isolates oneself, because the more one accuses others and justifies oneself.
A verdade é que é muito difícil construir pontes. O ser humano é mentalmente preguiçoso, e gosta de ficar na bolha, ela é reconfortante, segura, simples; provê um porto seguro em meio à balbúrdia geral, uma explicação completa para o caos incompreensível. Some-se a personalização maior do que nunca da propaganda. Esse direcionamento, explica Ellul, é essencial para o sucesso da manipulação, pois ela precisa se aproveitar de mitos, símbolos e padrões compartilhados para que seja eficaz. O propagandista que os conhece pode mudar o homem ao mudar seus símbolos, pois são estes que o condicionam. Aqui, mais uma vez, entendemos a necessidade de “desconstruir” os contos de fadas, os super-heróis, entre outros símbolos modernos. A relativização dos vilões em histórias que foram criadas para serem arquetípicas é mais um sintoma. Veja, o vilão não é mau, ele só é um oprimido, um traumatizado. A propaganda não pode criar algo do nada, ela precisa de sentimentos e crenças já de alguma forma presentes no indivíduo, e por isso a subversão dos símbolos já existentes, com toda a carga psicológica e histórica associada a eles, em vez da tentativa de criação outros, inéditos. Claro que ela vai utilizar as coisas mais “baixas” e imediatas para apelar ao homem; como diz Ellul,
“Propaganda does not aim to elevate man, but to make him serve.”
Para tal propósito a propaganda não vai direcionar ou evocar o que é belo e bom, e sim as ideias mais disseminadas e os piores padrões; é mais fácil instigar ódio, indignação e ressentimento do que amor e compaixão. É mais fácil apelar aos piores impulsos humanos do que aos mais nobres.
Assim, é imprescindível um conhecimento amplo da sociedade, de conceitos que Ellul chama de “sociological presuppositions”, mitos e “broad ideologies”. O propagandista jamais pode ir diretamente contra essas ideias, na verdade, ela deve ser baseada nelas e expressá-las, para que seja amplamente aceita. Pode parecer uma contradição quando consideramos o exposto até aqui, mas não é, pois são mais profundas, não meras inclinações político ideológicas, mas a estrutura mesma da cosmovisão do cidadão médio. Ele as divide em duas: as “pressuposições sociológicas coletivas” e os “mitos sociais”.
A primeira consiste em
“[…] a collection of feelings, beliefs, and images by which one unconsciously judges events and things without questioning them, or even noticing them. This collection is shared by all who belong to the same society or group. It draws its strength from the fact that it rests on general tacit agreement.”
Há, de acordo com o filósofo, quatro grande pressuposições sociológicas no mundo moderno: que o objetivo do homem na vida é a felicidade, que o homem é naturalmente bom, que a história se desenvolve em um progresso infinito, e que tudo é matéria. Essas não são apresentadas aqui como noções filosóficas, e sim crenças instintivas comuns à maioria das pessoas. Já as mencionei em artigos anteriores, dada sua grande influência sobre o pensamento moderno, e suas implicações problemáticas.
Já os mitos são inclinações ainda mais profundas de uma sociedade.
“It is a vigorous impulse, strongly colored, irrational, and charged with all of man's power to believe. It contains a religious element.”
Os dois mitos fundamentais, sobre os quais todos os outros mitos se assentam, são, segundo Ellul, a Ciência e a História. Os mitos secundários, calcados nestes últimos, são o mito do Trabalho, da Felicidade (o autor ressalta que o mito não é a mesma coisa que a pressuposição, que trata da busca), o mito da Nação, o mito da Juventude e o mito do Herói. É sobre as pressuposições e mitos destacados que a propaganda, então, pode ser construída. Exemplificando a questão da ciência como mito, vemos a visão do progresso tecnológico como algo contínuo, uma expectativa que a propaganda deve atender, se quiser ser bem sucedida. Somando-se a isso o mito da História e da progressão infinita, Ellul resume um dos pontos centrais que a propaganda política deve observar:
“All propaganda must play on the fact that the nation will be industrialized, more will be produced, greater progress is imminent, and so on. No propaganda can succeed if it defends outdated production methods or obsolete social or administrative institutions. Though ocasionally advertising may profitably evoke the good old days, political propaganda may not. Rather, it must evoke the future, the tomorrows that beckon, precisely because such visions impel the individual to act.”
Qualquer mudança no paradigma dominante é visto como retrocesso, porque ataca o mito da ciência e o pressuposto do progresso. Se hoje, certas leis já citadas fossem revogadas, alguém tem dúvidas de que isso seria amplamente divulgado como um retorno a um passado obscuro? Já reparou na reação do ser humano médio quando você fala em monarquia como uma possibilidade de governo? Veja, independentemente do fato de ser ou não viável ou desejável na realidade atual, a simples referência já elicita reações principalmente de desprezo, porque afinal, “isso já está superado”. E assim é se você falar sobre educação clássica, sobre a possibilidade da mulher ficar em casa para cuidar dos filhos, sobre aprender latim, sobre aristocracia… Isso já ficou para trás na história, portanto, não serve. Ellul usa o exemplo da França para mostrar como é difícil ir contra a maré, ou seja, fazer qualquer tipo de propaganda que confronte as pressuposições e mitos locais:
“Thus, in France, the general trend toward socialization can be neither overridden nor questioned. The political Left is respectable; the Right has to justify itself before the ideology of the Left (in which even Rightists participate). All propaganda in France must contain-and evoke-the principal elements of the ideology of the Left in order to be accepted.”
E não ocorre assim até hoje? Sempre que um presidente de “direita” é eleito, ele passa todo o seu mandato basicamente se explicando, justificando cada atitude e cada fala pelo receio de ser apanhado fora da área permitida. Ele até acaba abraçando pressupostos da “esquerda” para aumentar sua aceitação. O nosso populista de direita e sua base no legislativo chegaram a revogar alguma lei progressista? E já que estamos falando do Brasil, Ellul consegue até explicar, ainda que em parte, o que está ocorrendo aqui. Quando explica que a propaganda deve utilizar todos os meios disponíveis, ele afirma que até o judiciário precisa fazer parte do arsenal. Na situação normal de uma democracia, o acusado pode usar o julgamento como palanque político para expor suas ideias, mas, num julgamento ocorrendo no estado totalitário,
“[…]the judge is forced to demonstrate a lesson for the education of the public: verdicts are educational.”
Se um certo pessoal tivesse lido Ellul, saberiam que
“As for censorship, it should be as hidden and secret as possible. Moreover, all serious propagandists know that censorship should be used as little as possible.”
O fato de observarmos os dois fenômenos, isto é, o acusado usando o julgamento como palanque político e o juiz usando as sentenças como forma de “educar”, só reforça a natureza paradoxal do estado liberal-democrático moderno, suas tendências autoritárias coexistindo com a tentativa de preservar a imagem de defensor da liberdade. A explicação, mais uma vez, parece residir na propaganda.
Em primeiro lugar, o Estado moderno precisa do apoio dos cidadãos para funcionar. Apesar das decisões serem tomadas de cima para baixo, a participação da massa é necessária para as atividades políticas, mesmo se apenas pro forma. Tendemos a pensar que os governos consultam a população, “sentem a temperatura”, para então tomar medidas que a agradem. No entanto, o contrário é verdadeiro: o governo primeiramente incute a ideia na opinião pública para depois tomar a medida que já iria tomar de qualquer forma. Apesar da implantação das políticas sempre seguir de cima para baixo, o governo precisa, em um certo nível, do alinhamento popular. Como disse acima e em outro artigo, é tudo uma questão de manter a aparência de legitimidade e de manter aqueles que defendem o regime em total aderência. São coisas que diminuem o custo político para governar: menos mãos para “molhar”, menor necessidade de ameaças e imposições, menor barulho na imprensa etc. Então, o apoio dos cidadãos ao governo é muito mais para endossar suas ações e performar o teatro das eleições. Para suscitar tal participação, é necessário politizar as questões cotidianas, convencer as pessoas que a atividade política é um dever. Num estado democrático, o proposto é que ideias concorrentes circulem sem impedimento e o povo, livremente informado, escolha, através do voto e da manifestação do seu pensamento, aquelas que mais lhe agradam. No papel, é claro. Na prática, como afirma Ellul, é impossível permitir a expressão de todas as opiniões, pois isso levaria à fragmentação e à perda do controle pelo poder central. Ora, se nem todas as ideias políticas podem ser defendidas, segue-se que a democracia não é democrática. Se, ainda mais, a propaganda é utilizada pelo Estado para distorcer o “mercado das ideias”, estamos ainda mais longe do ideal proposto inicialmente. No entanto, o mito que cerca o conceito de democracia é tão forte que, no momento em que a propaganda é utilizada para propagar ideias democráticas, ela é considerada democrática, e não, como deveria ser observado, a democracia deixa de ser democrática. Um exemplo: quando pensamos na propaganda política da Alemanha de Hitler, da Itália de Mussolini ou da Rússia de Stalin, imediatamente a identificamos como uma má propaganda, pois está a serviço de um governo totalitário. Quando ela é utilizada num governo democrático, imediatamente perde essa conotação, contudo, como vimos acima, algumas correntes de pensamento necessariamente serão suprimidas em prol da conformidade e da manutenção do poder, portanto, estaremos diante de um clássico caso de, nas palavras de Ellul, “No freedom for the enemies of freedom”. Os perseguidos pelos atos e palavras “antidemocráticos” estão aí para não deixá-lo mentir.
Se a democracia fizesse jus à sua versão tida como ideal, ela jamais poderia usar a propaganda, ao menos não em toda a sua capacidade, pois esta, como vimos acima, exige tanto a utilização de todos os métodos disponíveis bem como a supressão de propagandas concorrentes. Assim, os aspectos que são impeditivos à propaganda devem ser abandonados, pois
“the combination of effective propaganda and respect for the individual seems impossible.”
Os sistemas de propaganda conflitantes tentam capturar o indivíduo, e ele sofre uma cisão psicológica. Veja, não é coincidência que tenhamos a falsa dicotomia “esquerda x direita”: são dois sistemas de propaganda lutando pelo propagandeado, e a supressão dos sistemas menores, dotados de menos meios de disseminação, progressivamente centraliza a propaganda, que parece seguir a mesma dinâmica do poder: até mesmo o sistema opositor “permitido” parece agora estar sob ataque pelo sistema dominante. A tentativa de controlar totalmente o homem pela fabricação do consenso necessita de uma visão única, simples, que ofereça ao dominado a clareza e a tranquilidade das respostas fáceis. Ellul parece, por alguns momentos, abraçar o mito da “democracia” enquanto ideia:
“A man who lives in a democratic society and who is subjected to propaganda is being drained of the democratic content itself—of the style of democratic life, understanding of others, respect for minorities, re-examination of his own opinions, absence of dogmatism.”
Ela que, supostamente, deveria abarcar todas as ideias e correntes de pensamentos, mas cujo resultado é a formação de dois grandes blocos permitidos de pensamento, ainda pode ser chamada de democracia? Se, para espalhar o ideal democrático, são utilizados os mesmos meios de controle psicológico, quais serão os efeitos disso sobre o cidadão? A conclusão do autor é tanto sombria quanto profética:
“The means employed to spread democratic ideas make the citizen, psychologically, a totalitarian man. […] The word democracy, having become a simple incitation, no longer has anything to do with democratic behavior. And the citizen can repeat indefinitely ‘the sacred formulas of democracy’ while acting like a storm trooper.”
Bem, creio que não é necessário comentar o quanto Ellul estava correto. A palavra é repetida à exaustão, tratada como algo quase sagrado, porém esvaziada de sentido quando suas premissas são ignoradas sem qualquer cerimônia para a perseguição de opositores. Esse parece ser o resultado final da democracia, a totalitarização inevitável, pois cada sistema de propaganda precisa conformar o homem aos seus pressupostos, garantindo a conformação, o que exige a supressão dos outros sistemas. Podemos inferir que ou a propaganda é abandonada (e, se levarmos em conta o que falam tanto Ellul como Lippmann e Bernays, isto é algo impossível), e com ela o risco de perder o controle da massa, ou a democracia se torna tirania, para efetivamente controlar tudo. Um certo filósofo grego, muito antes do francês, já havia explicado como a democracia terminava em tirania.
Poderíamos pensar que, educando os cidadãos, teríamos a solução para efetivamente ter um regime democrático, com uma participação consciente da massa no processo político. Ledo engano. Chego então ao terceiro - e último - aspecto que quero destacar, e que diz respeito à finalidade política da propaganda, subdividido em propaganda de agitação e de integração. A história mostra que populações sem cultura só podem ser alcançadas pela propaganda de agitação, cujo propósito é inflamar a massa para derrubar governos ou causar convulsões sociais, no entanto, ela não é influenciada pela propaganda de integração, essencial para que a massa se molde ao modo de vida desejado e promovido pelo sistema, pois
“As the more perfectly uniform the society, the stronger its power and effectiveness, each member should be only an organic and functional fragment of it, perfectly adapted and integrated.”
Agitar as massas é eficaz para produzir as revoluções, mas, uma vez que o poder é tomado, imediatamente deve-se substituir a propaganda de agitação pela de integração, sob pena de perder o controle do povo e ter que recorrer a uma ditadura. O problema é que o segundo tipo exige um certo nível cultura, pois se o propagandeado sequer sabe ler e entender o que é comunicado, ele não pode ser manipulado. Assim, a educação primária se faz necessária para que o trabalho de integração ocorra. Você pode achar que o autor exagera, mas a história está do lado dele: na Coreia do Norte, um alfabeto mais simples foi criado para facilitar o aprendizado; na China, Mao fez o mesmo durante seu domínio. Não só isso, mas neste último caso os próprios textos utilizados para a alfabetização eram artigos de propaganda do governo. Há até “educadores” defendendo que a alfabetização deve já ter como um dos objetivos promover no indivíduo a “consciência de classe”. Imagine a força desse tipo de manipulação: é como se o analfabeto só recebesse uma versão da realidade, implantada nele ao mesmo tempo que aprende algo tão medular como o alfabeto.
Claro, essa educação não pode passar muito do nível mais básico, pois nenhum regime que se preza quer os cidadãos pensando criticamente por aí. O melhor nível, portanto, é o do analfabetismo funcional, pois a massa recebe e entende a propaganda, mas não consegue refletir a respeito nem fazer juízos de valor além do enquadramento imposto pelo sistema. Tendemos a pensar que o contrário, então, garante imunidade contra a propaganda: um homem bem educado certamente não será enganado por ela. Bem, se formos levar em conta a análise de Ellul, isto está longe de ser verdade, porque o homem educado não acredita na propaganda, e está convencido de que ela não tem efeito sobre ele, residindo exatamente aí sua vulnerabilidade. O propagandista a explora, convencendo o intelectual de que a propaganda é ineficaz e não muito inteligente. Ainda assim, a melhor defesa contra ela é
“[…] a high intelligence, a broad culture, a constant exercise of the critical faculties, and full and objective information […]”
Essa inversão das expectativas do propagandeado descrita acima é um mecanismo poderoso para iludi-lo. Além de nos enganar fingindo ser inócua, há uma forma ainda mais sutil de burlar nossas defesas mentais, e ela reside na ideia equivocada e disseminada de que a propaganda consiste apenas em mentiras. A implicação disto é que, se a propaganda disser a “verdade”, estaremos convencido de que a informação recebida não é propaganda, e assim, estaremos vulneráveis à manipulação. Goebbels chegou a propositadamente disseminar notícias falsas a respeito do regime nazista para agentes dos aliados, desmentindo-as depois para tanto desacreditar a propaganda aliada como fortalecer a alemã diante do público. Contrariamente ao pensamento comum, Ellul afirma que “In propadanda, truth pays off”, uma fórmula proclamada inclusive por Lenin. Na verdade, como ele deixa claro depois, as mentiras a serem evitadas são as que podem ser descobertas, pois resultam na perda total da credibilidade do propagandista. A ressalva é assim formulada:
“The truth that pays off is in the realm of facts. The necessary falsehoods, which also pay off, are in the realm of intentions and interpretations. […] This is the real realm of the lie; but it is exactly here that it cannot be detected. If one falsifies a fact, one may be confronted with unquestionable proof to the contrary. […] But no proof can be furnished where motivations or intentions are concerned or interpretation of a fact is involved.”
Ou seja, mentir de forma gritante torna a propaganda inefetiva, portanto, a manipulação não deve ocorrer no fato em si, e sim em seu enquadramento, nas opiniões a respeito dele saídas da boca dos “especialistas”, essas sim encomendadas para direcionar a opinião pública. Cansamos de ver manchetes tendenciosas e o uso de termos eufemísticos cujo propósito é suavizar a reação do propagandeado frente a algo que normalmente o revoltaria. Não há mais “criminosos”, apenas “suspeitos”. Não há mais “direita”, apenas “extrema-direita” ou a mais recente “ultra-direita” (os prefixos hiperbólicos parecem nunca ser suficientes); não existe “terrorista”, apenas “refugiados”.

A mentira está, portanto, na forma, e não no conteúdo. Quando um regime começa a mentir demais, é sinal de que ou ele domina tão completamente a população que sequer precisa se dar ao trabalho de falar a verdade, ou então perdeu a capacidade de integrar a massa pela propaganda, e logo logo vai trocar as palavras doces pela censura e perseguição.
Haverá, podemos perguntar, alguma forma de nos defender da propaganda? A pintura feita por Ellul ao longo do livro é desanimadora: a propaganda parece onipresente e irresistível. O próprio autor fala pouco sobre possibilidades de defesa. Num dos raros trechos, já citado anteriormente, ele diz que inteligência, cultura abrangente, constante exercício das capacidades críticas e informação objetiva e completa são as melhores defesas contra a propaganda. Em outro trecho, ele afirma que conhecer os mecanismos de atuação da propaganda não nos protege automaticamente, mas nos coloca em uma “posição melhor para resistir”, pois deixamos de crer que estamos acima dessas coisas. Mas, através da sua análise de como ela opera, das vulnerabilidades exploradas, podemos inferir outras formas de resistência.
Vimos, por exemplo, como a informação não é necessariamente algo bom, e como o fluxo ininterrupto de notícias e novos acontecimentos termina por prejudicar nossa capacidade de refletir sobre as coisas. Portanto, uma das formas de defesa é reduzir nossa exposição ao fluxo midiático, ou seja, nos afastar das redes sociais e parar de ver notícias. Tudo o que é realmente impactante acaba chegando até nós de uma forma ou de outra, e 99% (ou mais) das notícias não tem qualquer implicação no cotidiano. Outra forma de nos tornar mais vulneráveis é nos isolar, nos afastar do convívio com outras pessoas. A internet é especialmente perversa nesse sentido, pois todos, atrás de um monitor ou de um celular, se tornam especialmente “corajosos” no sentido ruim da palavra. Por isso, estarmos enraizados e cultivarmos boas relações familiares e comunitárias são uma potente defesa contra a manipulação.
Um outro ponto de fragilidade é a crença nos pressupostos da sociedade moderna, quais sejam, que o objetivo do homem na vida é a felicidade, que o homem é naturalmente bom, que a história se desenvolve em um progresso infinito, e que tudo é matéria. O que Ellul está dizendo sem dizer é que a crença numa realidade transcendente, uma cosmovisão que rejeite de partida tais pressupostos, é uma excelente defesa contra a propaganda. Não por acaso, o paradigma cristão se opõe a todos eles, e além de nos afastar dessa cosmovisão ilusória, também nos impede de sofrer os efeitos da criação de animosidades entre as pessoas. Infelizmente, até o cristão pode ser arrebatado (trocadilho não intencional) pela propaganda e passar a odiar as pessoas por divergências ideológicas e políticas, mas, se ele de fato é um seguidor de Cristo, sempre se lembrará da Sua mensagem. Se queremos ver qualquer mudança, precisamos do poder do exemplo. Se, por um lado, o diálogo é realmente difícil em alguns casos, devemos manter a mão estendida e o coração aberto, priorizar o fato de que somos todos pecadores e carecemos da glória de Deus; que devemos amar o próximo; que devemos orar pelos nossos inimigos; que devemos ser mansos e humildes de coração; que devemos perdoar para que sejamos perdoados; e que a nossa busca última é a salvação da nossa alma. Rejeitemos participar desse jogo doentio que separa pessoas, cria barreiras e nos impede de julgar adequadamente. Se uma imagem vale mais que mil palavras, opto por encerrar com uma história, um alerta ainda mais poderoso que o de Jacques Ellul.
Zhang Hongbing era um jovem chinês comum de 16 anos, que vivia na cidade de Guzhen, província de Anhui, no Leste da China. Durante a revolução cultural promovida por Mao, ele se engajou politicamente e passou a fazer parte da “Guarda Vermelha”, grupo político de jovens apoiadores do regime socialista. Nessa época, houve duras perseguições políticas com prisões, torturas, trabalhos forçados etc. e, como de costume, muitas e muitas delações. O jovem Zhang era apenas mais um jovem militante como tantos outros, cuja história poderia jamais ser conhecida por pessoas além do seu círculo familiar e social. Foi em manifestações, distribuiu panfletos, deve ter feito um ou outro discurso inflamado, mas ganharia alguma notoriedade por outra razão.
Em 13 de Fevereiro de 1970, Zhang delatou a própria mãe.
Ela foi arrastada pela polícia política de Mao, torturada, morta, e enterrada numa vala comum, e seu filho, quando a entregou, estava totalmente ciente de que este seria seu destino. O militante de outrora hoje se arrepende, e, muitos anos depois, busca alguma forma de redenção; segundo consta, visita diariamente a lápide da mãe, e luta para torná-la patrimônio cultural tombado. É seguro dizer, no entanto, que sua atitude na adolescência lhe assombrará pelo resto dos seus dias.
Esse é o poder da propaganda.
Lembro, mais uma vez, que aqui estamos falando de propaganda como instrumento de manipulação de populações, e não de propaganda no sentido comercial/marketing.
Eu havia feito uma tabela com todas, mas decidi não colocar aqui, porque o autor chamou a pré-propaganda de “propaganda sociológica” e mais à frente um outro subtipo também por esse nome. Descrevê-las superficialmente poderia confundir o leitor. Uma das críticas que faço ao livro são justamente essas muitas divisões e subdivisões da propaganda, que prejudicam a clareza. Na verdade, tenho certeza que estas complicações são mais resultado da natureza incerta, das mútiplas sobreposições e do caráter complexo do fenômeno, do que qualquer incapacidade de sistematização por parte do filósofo.
A tradução que li usa o termo “propagandee”, que traduzi como “propagandeado”. Esse termo em português se refere mais àquilo que é o conteúdo da propaganda, como “foi propagandeada por todos os cantos a nova reforma tributária”. O sentido que utilizo é o da pessoa que é receptora da propaganda, por isso creio que na voz passiva o termo seja adequado.
Texto longo, mas ótima leitura!
Sempre que penso em propaganda - a um só tempo como manipulação das massas e estratégia de venda de produtos -, lembro muito de um documentário já antigo da BBC chamado "The Century of the Self". Tem até uma versão legendada no YouTube. Não sei se já viu, mas vale bem a pena.
Parabéns, adorei o ensaio, o texto corre bem. Acompanho Dave Greene, Kriptos e Cia, e já tinha ouvido falar desse livro e esse ensaio caiu bem. Obrigado